Longa noite

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Deitou-se preocupado e sem sono. O barulho da chuva o incomodava, e a noite não passava. Então, o que ele temia: aqueles olhos semi-cerrados o observando. Não, não havia ninguém no quarto. Havia, sim, alguém na sua mente. Até o perfume pôde ser sentido. A sensação de movimento sobre o colchão. O calor dos seus braços. Estava tudo ali. Inclusive aqueles olhos semi-cerrados de reprovação.

Ele não sabia o que havia feito. Não pudera ter feito algo de errado. Tinha os mais sinceros sentimentos. Sentia sim alguma coisa diferente, mas sobretudo, sentia apreço, amizade e carinho. Claro, aquele perfume realmente o abalava. Mas ele não sabia o que pudera ter feito de mal. As conversas foram sinceras, apesar de algumas atiradas maldosas, ou bondosas, dependendo do ponto de vista. Na verdade, ele sabia muito bem o que havia feito, e por isso ela continuava ali. Sem esboçar raiva ou tristeza. Pelo contrário. Ela afagava os seus cabelos carinhosamente. Mas aqueles olhos ainda o incriminavam. E no reflexo desses olhos, conseguiu entender o que ela dizia. Sem que uma palavra fosse dita, ele entendia o que ela dizia. E a cada palavra compreendida, sentia o peso da decisão. E aquela noite não passava.

A chuva aumentou. A pressão aumentou. Os olhos continuaram a mira-lo. E ele sabia que naquele momento, era ela ou nada. Sabia também que escolhe-la não era dizer sim a sua escolha, mas dizer sim à espera, ao respeito pela amizade. O sim que ele deveria dizer era a velha conversa entre amigos. O sim que ela esperava era o bom bate-papo quase como irmãos. E se esse era o sim que ela esperava, esse era o sim que ele daria. E que longo sim, nessa noite que nunca passava.

Ela então deu-lhe um beijo no rosto, e como única palavra de toda aquela noite, pediu-lhe que acordasse. Enfim, aquela noite passou…

Eu nunca te abandonei

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O ônibus estava vazio. Em plena segunda-feira, tudo estava vazio. Não havia engarrafamento. Não havia multidão. A única coisa que enchia a paisagem era a garoa fina esfriando a noite. Sentado em um dos únicos bancos ocupados, ele escutava música nos fones de ouvido.

A chuva cai lá fora
Estou cuidando de ti
Mandarei o sol iluminar
A escuridão do teu olhar

O silêncio além do mp4 era tão avassalador quanto a escuridão daquela noite órfã. Era amedrontador pensar que a solidão era tudo que havia naquele momento, e que a distância entre eles era enorme. A saudade chegou, e a imagem de meses atrás fechou-lhe os olhos. Ele corria, ela caminhava. Um desencontro. Um reencontro. Um adeus. Um beijo… Um beijo que encheu o coração e os pulmões, que dava vontade de gritar, de correr, de pular. E depois de tudo, estava ali, sozinho.

Enquanto você diz no seu conforto
Enquanto você me fala entre dentes
Poeta bom, meu bem, poeta morto

Poemas no ônibus as vezes fazem sentido. Músicas sempre fazem sentido. Tudo parecia levar-lhe a ela. Tudo, menos aquele ônibus. De súbito, foi tomado por intensa força. Levantou-se, desceu do veículo e dirigiu-se à rampa que levava a passarela. Sentia que algo o esperava do outro lado. Ali o movimento de pessoas parecia maior, mas elas cruzavam seu caminho como a chuva, que agora aumentava, sem tirar seu foco. Atravessou a passarela.

And I forget just why I taste
Oh yeah, I guess it makes me smile
I found it hard, it’s hard to find
Oh well, whatever, nevermind

Hello, hello, hello, how low

Adentrou os portões, e viu-a, sentada em frente ao chafariz. Atrás, algo lhe dizia que era o momento. Ad Verum Ducit. Chegou mais perto. Mais perto. Tocou-a. Mais perto. Deu-lhe um “oi” discreto e um beijo apaixonado que durou uma eternidade. O som da água atrás era mais um pretexto para o romantismo, já que os fones de ouvido pendiam da gola da camiseta, tocando músicas ao léu. Mas uma música ainda podia ser ouvida.

Te amo
Amo seu sorriso
Se estou dormindo
Não quero acordar

Com um solavanco, acordou no mesmo ônibus vazio. Sua mente ja lhe pregava peças…


Os parágrafos em itálico são, respectivamente, trechos das músicas Bem-vindo (Thomas Krause e Lauren Kommers), Você só pensa em grana (Zeca Baleiro), Smells like teen spirit (Kurt Cobain, Dave Grohl e Krist Novoselic) e uma música da qual não lembro o nome, de autoria de um grande amigo meu: Daniel Braga.

Rangido

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Não era eu naquele quarto. Não poderia ser eu. Naquela escuridão toda, os olhos eram as únicas coisas que ainda tinham luz própria, mas não era a luz da esperança. Era a luz do medo e da vingança. Sentado na velha cadeira de balanço que um dia sustentou meu bisavô, eu escutava um rangido secular. Ah, aquele rangido. Todas as noites, antes de dormir, aquele som atravessava as paredes de concreto do velho casarão e invadia meus ouvidos. Eu me lembrava daquele velho decrépito que não saía da cadeira. Tinha a barba longa, um chapéu sempre enterrado sobre a cabeça. Os olhos azuis, fundos, em meio ao rosto enrrugado trasmitiam pena a quem os visse. Não me lembro direito da sua voz. Na verdade, a única imagem que permanecia na memória era do rangido da cadeira de balanço de onde meu bisavô nunca saía. Agora quem estava lá era eu, e pela primeira vez em décadas pude ver nos espelho meus olhos brilhando outra vez. De amor? Não, meus olhos não brilharam de amor desde a minha juventude, quando se tornaram opacos… para sempre.
Eu era o decrépito agora, e o rangido era culpa minha. Muita coisa ainda era culpa minha. Não fui eu quem matou o velho! Mas ainda assim existia muita culpa pesando sobre meus ombros. Culpa… Culpa de quê? Porque eu me sentia culpado? A culpa foi de quem me fez assim! Quase meio século de amargura por um amor de juventude… Por alguns amores de juventude. Uma vida inteira de trabalho, reconhecimento e ascenção não puderam apagar a mágoa que se instalou no coração. E agora, eu me culpo por tudo que aconteceu. É verdade, não adianta jogar a culpa nela. Nem sei se ainda vive. Tudo aconteceu há tanto tempo.
Agora, só uma culpa me interessa. E essa será a última culpa que terei na vida.

Girou o tambor. Um movimento de dedo. Um estampido. E nunca mais se ouviu falar…